quarta-feira, 19 de fevereiro de 2014

QUANDO HOMOSSEXUALIDADE E PEDOFILIA FORAM TEMAS CENTRAIS EM DUAS NOVELAS


Quando um autor pensa em uma novela com a qual ele estará envolvido e absolutamente absorvido por um mundo fictício, onde será Deus, criando e manipulando a vida de algumas dezenas de pessoas, durante pelo menos um ano inteiro, sendo senhor quase sempre incontestável do destino de todos, ele precisa no mínimo dissertar sobre um assunto que o fascine, que mexa consigo de alguma forma que o impulsione a criar situações que façam a história parecer atraente e interessante de ser contada, prendendo o telespectador inexoravelmente pelos quase ou mais de 200 capítulos de uma telenovela. 

Não raro o mote principal de uma trama folhetinesca trata-se de uma história de amor. Geralmente triângulos amorosos ou amores que topam com o obstáculo da diferença social. De tempos em tempos os autores tentam se renovar, criar novas tramas, novas situações, mas os amores dificultosos sempre estão lá presentes, por mais inovadora que as tramas pareçam. Vide Avenida Brasil (Nina e Jorginho) e Salve Jorge (Morena e Theo), a primeira em ritmo seriado, com película de cinema, pautava seu tema em uma grande vingança, história forte e densa, muito bem conduzida por autor e direção, que conquistou milhares de fãs ardorosos, encerrando seus 179 capítulos como um grande sucesso. Já a segunda trama citada, escrita por Glória Perez, não teve o mesmo impacto de sua antecessora, muito menos o sucesso retumbante desta. Rainha em abordar temas que envolvem grandes campanhas sociais, muitas vezes de forma bem sucedida, a autora encerrou seu último trabalho com a triste pecha de enorme fracasso.

Em ambos os casos mencionados, tanto um quanto o outro apostaram em algo que acreditavam, era uma boa história a ser contada, com assuntos que certamente os empolgavam particularmente e que conduziram da melhor maneira que acharam possível para conquistar o público. Um foi feliz em sua missão, o outro não.

No entanto, quando um novelista se propõe a trazer como tema principal de sua trama algo que foge do tradicional amores impossíveis, triângulos amorosos, briga pelo poder e mais uma porção de clichês que já conhecemos bem, precisa usar de muito tato e inteligência para não afugentar o público fiel ao gênero e nem tornar a história indigesta. Estamos acostumados a ver em nossas telenovelas ao longo dos anos, os mais diversos e polêmicos temas serem abordados, mas sempre como história secundária, com a missão de alertar e levar um pouco mais de informação ao telespectador que desconhece o assunto em questão. Temas como incesto, alcoolismo, dependência química, Síndrome de Down, cleptomania, esquizofrenia, crianças desaparecidas, transformismo, deficiência visual, auditiva, violência doméstica, autismo e mais uma série, já foram abordados com boa repercussão, mas sempre ali meio de canto, no quartinho dos fundos, esperando os conflitos do casal principal dominar a cena na sala pra depois aparecer como coadjuvante, nunca como tema principal, que permeasse a história dos protagonistas, mostrando que na verdade todo mundo com seus defeitos, vícios e demônios é protagonista de sua própria vida, independente de ter ou não uma grande história de amor heteronormativa que só acabará bem se culminar no "felizes para sempre".

Porém, e apesar de, uma vez ou outra surgem autores corajosos, movidos por um profundo desejo de contar uma história em que acreditam, mesmo que o fio condutor da narrativa seja um tema incômodo, onde precisem andar no fio da navalha pra levar aos lares dos espectadores uma trama que quebre a resistência e a ignorância da grande massa, driblando-a e encantando-a. Para isso os responsáveis por tais histórias tecem uma teia por muitas vezes intrincada, onde não imaginamos no que vai dar, costurando-a de forma à envolver sem chocar e somente no final, lá no último capítulo é que nos damos conta de que a novela foi uma grande ousadia, que quebrou paradigmas e nos apresentou como tema principal um enredo que seria impensável e rejeitado com grande repulsa pelos telespectadores, se tivesse sido anunciado de antemão. Satisfeitos com os resultados por receber uma novela cuja a trajetória foi cativante, nos damos conta da grandiosidade da obra e sua narrativa, apenas no desfecho de seu capítulo 200 e pouco.

Pensei nisso tudo ao me lembrar de duas novelas com temas centrais espinhosos. Houve dois momentos na teledramaturgia do horário nobre da Rede Globo em que os autores Sílvio de Abreu e Walcyr Carrasco abordaram como carro-chefe de suas histórias a pedofilia e a homossexualidade. Ambos os temas foram a espinha dorsal, respectivamente das novelas Passione (2010) e Amor à Vida (2013)

Talvez alguns não se lembrem, mas na novela de 2010, Passione de longos 209 capítulos, Fernanda Montenegro como Bete Gouveia era o grande nome da trama. Ela interpretava uma rica empresária, mãe de três filhos, que buscava reencontrar o filho mais velho ilegítimo, Totó de Tony Ramos, o qual pensava ter morrido no nascimento há cinquenta anos, mas descobre no leito de morte do marido que este, sem estrutura para criar o filho de outro, entregou-o a um casal de empregados italianos que voltou a sua terra de origem para cuidar da criança por lá. Ao descobrir toda a verdade, Bete vai em busca do filho na Itália. O mote principalmente da trama aparentemente era esse, todos os conflitos envolvidos nessa revelação familiar, tanto pros Gouveia quanto pra família de Totó e os desdobramentos dessa história envolvendo rejeição, ambição, mentiras e grandes golpes. Golpes esses armados pelos vilões Clara (Mariana Ximenes) e Fred (Reynaldo Gianecchini), que pareciam estar interessados somente no dinheiro de Bete Gouveia, embora houvesse também uma motivação por vingança da parte de Fred, que viu seu pai se matar após sofrer um acidente de trabalho na fábrica dos Gouveia e ser afastado por invalidez. No entanto toda essa trama intrincada, onde a grande vilã e verdadeira protagonista Clara, enlouquece o velho Totó de paixão e casa-se com ele pra dar o golpe do baú, revelou-se em seu último capítulo ser basicamente sobre pedofilia e os traumas causados por tal crime. Pois todas as motivações de Clara no fim, revelaram-se por ela ter sido abusada na infância pelo filho mais velho dos patrões de sua avó, que na época era empregada na casa dos Gouveia e aceitava dinheiro de Saulo (Werner Schünemann) o primogênito da família, para que molestasse à vontade sua neta. Por aí já temos uma ideia de como deve ter crescido a pequena Clara, sendo vendida pela própria avó, à mercê de um homem escroto e sem caráter. E a vó maldita, vivida abominavelmente bem por Daysi Lúcidi, provando total falta de escrúpulos, depois de aposentada, continuou fazendo o mesmo com a neta mais nova, vendendo-a por uma noite aos hóspedes de sua pensão. A menina era irmã de Clara, a qual esta a defendia com unhas e dentes contra a vó do mal. À certa altura da trama, o personagem Saulo é friamente assassinado à facadas num quarto de motel, e do meio pro final o "quem matou Saulo?" torna-se o grande mistério da trama, revelado no último capítulo. A terrível assassina é nada mais nada menos que Clara Medeiros. Além de todas as maldades que aprontou com os pobres mocinhos da história, Clara fecha sua grande trajetória de vilanias com seu maior objetivo, eliminando o homem que a violentou durante toda a infância. E no fim entendemos que a única vítima da história toda era ela. De repente, com a surpreendente revelação nos momentos finais da trama, sobre os verdadeiros motivos da vilã com cara de anjo, tudo se justifica e a perdoamos por todas as suas crueldades. Achei esse desfecho sensacional, Sílvio de Abreu foi extremamente inteligente, cauteloso e audacioso ao conduzir sua história alicerçada em um tema tão indigesto, de maneira magistral. A trama em si não foi das melhores, teve "barriga" e ficou enfadonha durante um tempo, sem contar que vilões serem os assassinos misteriosos dos "quem matou?" é o maior balde de água fria, pelo menos pra mim, mas nesse caso tudo se encaixou à perfeição e foi maravilhoso ver um grande autor dar o seu recado de forma tão contundente e bem feita. 
 

Recentemente, à menos de um mês, podemos acompanhar ao longo de inacreditáveis 221 capítulos o desfecho da novela Amor à Vida, escrita por Walcyr Carrasco. Onde, a despeito de Bruno (Malvino Salvador) e Paloma (Paola Oliveira) com seus dramas familiares e amorosos, bebê jogado em caçamba de lixo, vingança de secretária, golpe do baú em mocinha com câncer e mil campanhas sociais mal abordadas, o que o autor quis realmente foi escrever uma história sobre a homossexualidade, a não aceitação desta pela pessoa que mais se admira e as consequências disso, que é a falta de amor e compreensão, na cabeça de um gay que se enruste para obter a aceitação daquele, que pra ele é o exemplo máximo a ser seguido. Então nasceu Félix Khoury (Mateus Solano), gerado como o vilão-mor da trama, capaz das maiores atrocidades por dinheiro, poder e a aceitação pelo abjeto pai César Khoury (Antônio Fagundes). Com uma aceitação absurda ao vilão gay, Walcyr viu seu caminho livre para dar as nuances que quisesse ao personagem e deitar e rolar, até finalmente transformá-lo num vilão redimido, tornando-se o verdadeiro herói e mocinho da novela, com direito a par romântico, torcida do público para que fosse feliz no amor e um emocionante e apaixonado beijo no final. Muito se disse e até mesmo o próprio Wacyr declarou várias vezes que escrevia conforme a reação do público, o que subentende-se que talvez a ideia inicial da trama não fosse essa, mas sinceramente não acredito. Aposto que Walcyr já tinha essa ideia guardada na caixola há tempos, e conseguiu muito espertamente conduzir sua trama, à se tornar não só a primeira novela a exibir um beijo gay em uma trama da Globo, mas a primeira novela do Brasil a ter um protagonista e um casal principal gays. A novela foi de Félix e o romance mais instigante e enternecedor foi o dele com Niko (Thiago Fragoso), com destaques para alguns coadjuvantes como Márcia (Elizabeth Savalla), César, Pilar (Suzana Vieira), Valdirene (Tatá Wernewck) e Aline (Vanessa Giácomo), que estavam todos direta ou indiretamente ligados a ele, que foi de vilão à herói, de bandido à mocinho apaixonado, sempre com muito humor e veneno até obter seu maior desejo: a aceitação do pai e sua declaração de amor nos últimos minutos, da última cena, do último capítulo, no final mais emocionante e melancólico de uma novela, nos últimos dez anos. Walcyr falou e fez tudo o que desejou através de Félix, fechando com chave de diamante sua novela tão criticada e verdadeiramente cheia de defeitos, mas deu de presente à uma minoria tão discriminada, uma novela pra chamar de sua.

Um dia eu sonhei que dois homens gays poderiam protagonizar uma novela. Isso foi em 2005, quando Glória Perez fazia América, e em seus primeiros capítulos o garoto gay Júnior (Bruno Gagliasso), filho da fazendeira Neuta (Eliane Giardini), e ainda confuso em sua orientação sexual, começava a sentir um amor platônico pelo peão Tião (Murilo Benício), protagonista da trama, que o ensinava a montar à cavalo. Naquelas cenas, em que Júnior olhava Tião com ar de admiração e desejo reprimido, me vi no personagem, muitas vezes identificando perfeitamente o que ele sentia. E pensava ingenuamente o quão ousado e fascinante seria se por alguns segundos apenas, Tião o correspondesse com o mesmo olhar, nem precisava acontecer nada literal, mas uma insinuação, uma possibilidade. Tião tinha seu objeto de desejo, seu par romântico, a mocinha Sol (Déborah Secco), mas um protagonista bissexual talvez, por que não? Algo que ficasse subentendido, pra encher o coração de Júnior de esperança e os nossos também, gays apaixonados por novelas. Mas obviamente que nenhuma mínima insinuação aconteceu, isso detonaria a imagem do galã viril e rústico perante a esmagadora maioria de telespectadores. Nem ao menos o beijo entre Júnior e Zeca (Erom Cordeiro), seu par romântico na trama aconteceu, apesar de super alardeada na época. E eu tive a mais absoluta certeza de jamais teríamos um casal gay protagonizando novelas no Brasil, mas quase dez anos depois o sonho se tornou real, de maneira mansa, sutil e linda o amor entre iguais foi representado de forma indelével e inesquecível. Um amor que já ousa dizer seu nome.

À Walcyr e Sílvio meus parabéns e minha gratidão por fazerem de seu ofício motivo de orgulho e grande emoção àqueles, que assim como eu sempre foram fãs do gênero, e a despeito de quem enche a boca pra condenar os que assistem novela, julgando ser entretenimento para alienados, tem plena certeza e confiança de que o estilo não é uma obra menor, apesar do apelo popular. Sempre me interessei pela arte considerada maior como literatura, teatro, cinema, artes plásticas, música clássica e continuo interessado, mas a primeira forma de arte a qual tive contato foi a telenovela brasileira e se não fosse por ela demoraria um bocado pra me aproximar das outras. Hoje consigo manter um filtro com relação as novelas atuais, e nem tudo ou quase nada me apetece como antigamente, mas deixar de apreciar uma boa trama escrita incansavelmente pelos melhores novelistas do mundo, não creio que deixarei.  

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