domingo, 11 de fevereiro de 2024

Voltando a Escrever


Por onde eu começo? Me disseram pra não esperar inspiração. Quem quer escrever senta, abre o Word, encara a tela branca e começa. Sento, abro o Word, encaro a tela branca, observo o cursor piscando por alguns segundos, um ou dois minutos talvez, quem sabe cinco, e finalmente começo, ou melhor, recomeço.

Ainda não sei ao certo sobre o que quero escrever nesse texto, mas precisava começar de algum ponto. Meu reencontro com a escrita é uma das minhas maiores metas em 2024, contar sobre isso pode ser um bom começo.


Eu amo escrever desde que me entendo por gente. Aos nove anos, a paixão pelas novelas despertou em mim um desejo insólito: escrever novelas. Brinquei de criar histórias que seriam exibidas na tela da Globo às seis, às sete ou às oito da noite, por anos a fio, acalentando um sonho que seria o meu maior erro e a minha maior bênção - um dia explico isso melhor.


E foi assim, brincando, imaginando e fantasiando, em uma era pré-internet, enchendo cadernos e mais cadernos com as histórias que saíam de mim, que virei um adolescente tentando descobrir de que jeito conseguiria ganhar dinheiro escrevendo e efetivamente transformar a escrita em uma profissão. Como ganhar dinheiro vendendo livros, já que ser autor de novelas era um sonho quase inalcançável? A literatura parecia muito mais acessível que a TV, ainda assim não era fácil, e não existia em mim nenhum outro tipo de vocação. 


Os anos passaram, escolhi uma profissão qualquer, me formei e segui sonhando com a escrita. Abandonei as páginas dos cadernos e diários e mergulhei nas páginas virtuais, quando blogues se tornaram uma febre pra quem tinha qualquer pingo de pretensão em ser lido. O primeiro veio em janeiro de 2008: Borboletas na Janela. Paralelamente, criei um segundo blog para registrar meus 30 anos de vida, em um projeto que duraria 365 dias, onde eu contaria passagens da minha vida ao logo das três décadas de existência dela. Esse blog não vingou, escrevi uns quatro ou cinco textos e logo desisti da empreitada. Fiquei tão desgostoso com a minha incompetência em seguir em frente com o projeto que duraria apenas um ano, que deletei tudo e nem do nome da página me lembro mais. Mas quanto melhor eu achava que escrevia, mais vontade de me renovar eu tinha, então encerrei o Borboletas, que durou quatro anos, e comecei o Violetas Violáceas Violadas. Um tempo depois parei de escrever só pra mim e passei a colaborar com o Pop de Botequim, um blog de cultura e entretenimento. Em seguida, o mesmo criador do PdB reuniu seis colunistas para escrever sobre comportamento no Barba Feita, um novo blog onde falávamos do que quiséssemos, principalmente sobre comportamento. Mas o tesão naqueles projetos foi se esvaindo, e eu quis escrever sobre um tema que sempre gostei: novelas. Aí inventei o Lembra de Mim - Memórias Teledramatúrgicas do Esdras, onde escreveria só sobre teledramaturgia, e escrevi até novembro de 2018. Só agora, escrevendo isso, me dei conta que fui blogueiro - antes desse termo significar o que é hoje - por 10 anos ininterruptos.


Mas então veio essa pausa. Em 2019, virei criador de conteúdo no You Tube, e me encantei pela comunicação verbal, o que contribuiu para que eu deixasse um pouco de lado a escrita que sempre foi minha fiel companheira. E lá se vão cinco anos que eu não sento diante de uma tela em branco para escrever sobre o que me atravessa, para desabafar angústias e reflexões da vida, para transformar em contos ou crônicas o prosaico ou em poesia, o cotidiano. Parece que andei perdido, mas agora quero realinhar a órbita do meu planeta, voltar pro aconchego das palavras que tanto me confortam, escrever, escrever, escrever como um coração que não pode parar de bater, que andou fraco, mas precisa voltar a se exercitar pra respirar direito e viver cada vez melhor. Não quero nunca mais parar de me exercitar. Por isso, recomeço agora!




domingo, 22 de fevereiro de 2015

UMA MULHER VESTIDA DE LUA - PARTE II (FINAL)



Leia a primeira parte aqui: Uma Mulher Vestida de Lua

Ao ouvir o barulho da queda de Pandora, Ulisses freou o jipe violentamente e correu disparado em direção à noiva. Seu grito de horror e desespero ecoou por todo o redor. Ajoelhou-se ao lado dela e pegou-a no colo, o sangue já se espalhando por todo o vestido branco. Acomodou-a no jipe e partiu em uma velocidade alucinante, rumo ao posto médico de Alvorecer. Enquanto dirigia, seu coração agitado e ensandecido, parecia prestes a explodir. Forçava a respiração, a ideia de perder Pandora pra sempre, o deixava literalmente sem ar.

Pandora foi atendida às pressas. Do posto médico, Ulisses ligou para Ângelo contando o acontecido. Lívido e angustiado, Ângelo teria que comunicar os pais e os tios. E assim foi. O pânico foi geral. O estado de Pandora era grave. Com traumatismo craniano, teve que ser transferida para um hospital da capital. 

O casamento foi adiado. Os moradores de Alvorecer, praticamente todos, que conheciam Pandora desde menina, ficaram consternados e se mobilizaram em correntes de orações, para que a jovem se recuperasse o mais depressa possível. Mas, na manhã do domingo em que seria realizado o casamento mais esperado da cidade, Pandora teve morte encefálica.

A comoção foi total em Alvorecer. Os preparativos para o enterro de Pandora foram todos providenciados por Ângelo e seus pais, pois Francisca e Zé Raimundo, pais de Pandora, não tinham forças pra nada, e Tereza, fazia o impossível para que seu filho, Ulisses, agora uma figura derrotada pela dor e pela culpa, não perdesse a sanidade e cometesse uma loucura.

A cerimônia de adeus à Pandora, foi a mais bonita e triste que Alvorecer já havia visto. Quando todos se foram, Ângelo que manteve-se forte todo o tempo, permaneceu sozinho, e diante do túmulo da prima ajoelhou-se e chorou copiosamente. Deixou jorrar toda a emoção represada. Saiu do estado de inércia provocado pelo choque inicial e em mais uma conversa íntima e particular com sua amada prima, entre soluços, desabafou: "Por que você se foi? Por que me abandonou? O que vai ser de mim? Eu acho que sem você eu não sei existir. Como é que a gente vive sem um pedaço do nosso coração? Você não podia ter ido assim!"

Permaneceu sentado ao chão, recostado ao túmulo, completamente descomposto, por um tempo que pareceram horas, até as lágrimas secarem sozinhas, exausto, até sentir algo que parecia um leve sussurro em seu ouvido. Atento, levantou-se e se recompôs, desejando sentir novamente aquele sopro suave, que não se repetiu, mas o deixou com uma estranha esperança. 

Poucos dias depois da morte de Pandora, Ângelo foi ao monte verdejante que costumava ir quando era criança com ela e Ulisses. Ali eles brincavam e passavam inúmeros momentos deitados, olhando pro céu e contando as estrelas ou adivinhando o desenho das nuvens. Foi ali também, que Pandora lhe confidenciou, que havia tido sua primeira noite de amor com Ulisses. E naquele momento, em que ele ia lá pra matar a saudade e sentir-se mais próximo da prima, encontrou Ulisses, aos prantos. Ainda não tinham se falado desde o terrível ocorrido. Cada um vivendo sua dor separadamente, à sua maneira. Sofrendo pela perda da mulher que mais amavam.

Ângelo achou que seria o momento propício para unirem suas dores e se consolarem. Precisavam um do outro naquele momento. Afinal, também se amavam. De formas diferentes, mas se amavam. E podiam encontrar forças um no outro pra continuarem, pois sozinhos, talvez, não suportassem a falta de Pandora. 

Então Ângelo o abraçou, recostando o rosto dele em seu peito, deixando que suas lágrimas fartas, encharcassem sua blusa. E não disseram palavras. Apenas se consolaram em silêncio. E ambos entendiam perfeitamente a imensidão de seus sofrimentos.

Ângelo sentiu que precisava ficar em Alvorecer por tempo indeterminado. Trancou o curso de medicina veterinária na capital e permaneceu em sua terra natal. Uma noite, cheia de angústia, em que sonhou com Pandora sem parar, despertou na madrugada, quase sufocado. Era noite de lua cheia. Ao abrir os olhos, uma visão. Pandora, na janela, observando a bola branca e imensa no céu, como numa prece silenciosa de agradecimento. Ângelo não se assustou, achou que ainda sonhava e chamou pela prima: "Pandora!"

Pandora o encarou delicadamente, com um sorriso doce nos lábios. "Meu querido, você consegue me ver! Eu tive medo, que não conseguisse." "Sim. Eu vejo você Pandora! Você voltou?". "Infelizmente não, meu querido. Agora eu sou um espírito. Um fantasminha camarada. E só você pode me ver.". "Só eu? Mas por que? E o Ulisses?". "Você será a ponte entre mim e Ulisses." "A ponte? Como assim? Eu não entendo."

Pandora saiu da janela e sentou-se à beira da cama, próxima a Ângelo, que tentou tocá-la, mas traspassou-a, ela era imaterial. "Só espírito. Lembra?" "Queria tanto te dar um abraço!" Exclamou Ângelo, visivelmente decepcionado. "Você vai me sentir mais intensamente do que num simples abraço. Basta que aceite meu pedido." "Pedido? Qual?". 

Pandora pôs-se a explicar: "Você mais do que ninguém é testemunha do amor imenso entre mim e Ulisses. E agora posso afirmar, um amor maior que a vida. Ele está sofrendo, Ângelo. Sente minha falta. E eu também. O sofrimento dele não me deixa em paz. E eu sinto saudade. Esse amor ainda é muito profundo e carnal, não me deixa partir em definitivo. E eu sei que você também o ama, tão profundamente quanto eu, talvez, até mais." "Pandora, não...". Ângelo tentou interromper, mas Pandora continuou: "...Ângelo, não precisa negar. Eu sei. Eu sempre soube. Desde aquela tarde no rio, lembra? Você nunca deixou de amá-lo. E talvez eu tenha sido cruel em fazê-lo presenciar o nosso amor esses anos todos. Mas eu realmente acreditei que um dia você encontraria alguém que o fizesse superar Ulisses. Hoje, eu sei que não. Ulisses sempre será seu único e grande amor, mesmo que você conheça outro. Mas Ulisses nunca sentiu atração por rapazes nem nunca sentirá. Ainda assim, eu posso fazer com que você concretize o seu maior desejo." "Do que você está falando, Pandora?" Questionou Ângelo.

Pandora prosseguiu: "De uma troca. Você me empresta o seu corpo e nós dois compartilharemos da paixão que Ulisses sente por mim. Eu preciso senti-lo de novo, Ângelo, tocá-lo, fazer amor com ele. Mas sozinha eu não consigo. Olha pra mim, eu atravesso paredes. Preciso de você, de um corpo físico, do seu corpo."

Notando a expressão de terror e incredulidade do primo, Pandora tentou amenizar a situação e finalizar sua "visita". "Não tenha medo Ângelo. Você é especial. Nós somos especiais. Eu sussurrei no seu ouvido, lá no cemitério, que voltaria, e tô aqui. Agora, eu te peço que não me abandone. Pra que tudo aconteça, você só precisa subir a colina verdejante em noite de lua cheia, como essa de hoje, e me esperar. Olhe fixamente pra lua e eu estarei em você em poucos instantes, o meu espírito e a minha imagem. Seremos os dois, ao mesmo tempo, um só corpo." Dizendo isso, partiu, desaparecendo no ar como fumaça.

Ângelo despertou com os primeiros raios de sol. Os sonhos que tivera com Pandora, de tão reais, haviam lhe acalmado um pouco a alma. Sentia-se mais calmo e sereno. Após o café da manhã, foi ao encontro de Ulisses para contar-lhe que tinha sonhado com a prima. Disse-lhe que ela aparecera linda e radiante em seu vestido de noiva, seus cabelos negros brilhavam à luz do luar e ela estava bem, pedindo que ele lhe acalmasse o coração e não sofresse tanto com sua ausência, pois ela sempre estaria por perto. Ângelo omitiu toda a história verdadeira, o real motivo do sonho, que mais parecia uma visão. Ulisses gostou de ouvir o sonho de Ângelo, mas não se conformava que ela não aparecesse pra ele em sonho. Achava injusto não conseguir conversar com sua amada nem em sonho. Vendo a tristeza de Ulisses, Ângelo quis fazer algo. Desejou que o sonho da noite passada fosse real, não apenas uma alucinação. Queria que fosse verdade tudo o que Pandora lhe disse. Precisava arrancar daquele homem, o homem que amava, um pouco, de tanta infelicidade.

Na noite de lua cheia que sucedeu a aparição de Pandora para Ângelo, o primo apaixonado pelo noivo da prima, subiu a colina verdejante. Ele ajoelhou-se bem ao cume e mirou a lua com sofreguidão, como se suplicasse para que Pandora o possuísse. Não demorou e a magia se fez. Em poucos minutos, Pandora tomara o corpo de Ângelo para si e materializara-se em uma mulher de carne e osso. Vestida de noiva, partiu em busca de Ulisses, seu amado.

Ulisses mal podia acreditar em seus olhos. Era sua mulher, seu amor, igual como a tinha visto pela última vez, só que ainda mais linda. Não fez perguntas, apenas sorriu ao vê-la, o sorriso mais bonito que Pandora já vira. E abraçou-a fortemente. Tocou seus cabelos fartos e ondulados, seu rosto alvo, aspirou seu perfume profundamente e beijou seus lábios com toda a força de uma paixão cheia de saudade. Fizeram amor como se fosse a primeira e a última vez. E quando acordou na manhã seguinte, Ulisses não a encontrou. Mas havia um bilhete no travesseiro: "Me espere nas noites de lua cheia."

Ângelo sentia-se pleno e realizado, fora a noite mais linda de sua vida. Quando encontrou Ulisses naquela manhã, notou que o domador não parecia tão infeliz. Tinha voltado a trabalhar e seu semblante estava cheio de esperança. Perguntou a ele se estava tudo bem. Ulisses não se conteve e contou a Ângelo que Pandora havia aparecido pra ele na noite passada: "Você acredita ou acha que eu tô ficando maluco?". Ângelo lançou a Ulisses seu olhar mais puro, um sorriso terno e disse com todo o amor do mundo: "Acredito!"

E por incontáveis noites de lua cheia, Ulisses, Ângelo e Pandora viveram seu amor. 

domingo, 15 de fevereiro de 2015

UMA MULHER VESTIDA DE LUA


Tomavam banho de rio, os três, sempre inseparáveis. Ulisses, sempre ousado, mais ao fundo, enquanto Pandora e Ângelo, perto da margem, observavam e admiravam os mergulhos e as braçadas do menino bonito e corajoso, com ar selvagem, ao longe. 

Naquela tarde escaldante, enquanto observava Ulisses com ar de veneração, Ângelo disse à Pandora, com a inocência peculiar à uma criança de 6 anos, que amava Ulisses. No que Pandora rebateu: "Claro que ama, ele é nosso melhor amigo!" "Mas eu quero me casar com ele quando a gente crescer." Pandora, também do alto de seus 6 anos, olhou para Ângelo com uma cara de estranhamento e explicou: "Mas menino não casa com menino, seu bobo!" "É, eu sei, mas se ele também quiser casar comigo não tem problema, a gente pode ser os primeiros meninos a se casarem." Pandora deu uma risada e disse: "Acho que você tá falando a maior bobagem!" "Por que?", quis saber Ângelo. "Porque ele já falou que quer se casar comigo." "E você aceitou?" "Ainda tô pensando, mas se ele quer casar comigo, você vai ter que procurar outra pessoa pra casar. De preferência uma menina, né, pra ficar igual aos nossos pais, menino com menina." Depois da última frase de Pandora, Ângelo calou-se com o semblante entristecido. Com seu jeito doce, a prima havia sido categórica, meninos com meninos não se casam, só meninos com meninas. Mas ela não havia dito nada sobre meninos com meninos não se apaixonarem.


Ângelo e Pandora eram primos da mesma idade, suas mães engravidaram no mesmo período. Pandora nascera poucos meses antes. As irmãs Francisca e Martina, de origem humilde, sempre tiveram uma vida simples, se sustentando como costureiras. Até que um belo dia um jovem que acabara de perder o pai, um rico fazendeiro, dono de terras e cabeças de gado, conheceu e se encantou  por Martina. Os dois se casaram e mudaram-se para uma das maiores fazendas nos arredores da região de Alvorecer. Martina levou a irmã consigo, que logo conheceu um peão e também se casou. Ficaram os quatro morando juntos no imenso casarão da fazenda. Zé Raimundo, marido de Francisca, como administrador e homem de confiança da fazenda de seu co-cunhado Sebastião e as irmãs abriram uma pequena confecção de roupas num dos muitos galpões vazios da sede, que não demorou muito à crescer e se tornar um negócio rentável. Logo vieram os filhos, Pandora e Ângelo, pra aumentar a harmonia e a felicidade da família. 


Ulisses era filho de Tereza, cozinheira da família de Pandora e Ângelo. Viúva, perdeu o marido antes de saber que estava grávida. Desolada, recebeu todo o apoio, carinho e cuidado dos patrões. Ulisses nasceu pouco mais de um ano antes de Pandora e Ângelo. Naturalmente os três cresceram grudados. Tomando banho de rio, andando à cavalo, ordenhando e bebendo leite saído direto da vaca, livres, em contato com a natureza. Subindo em árvores, comendo as frutas do pé, correndo pelos milharais, escalando pequenas elevações que formavam lindos montes esverdeados, que enfeitavam os arredores de Alvorecer e onde se conseguia ver o céu mais de perto.


Em Alvorecer o tempo passava manso, devagar, num ritmo cheio de poesia, histórias e causos, muitas vezes difíceis de acreditar, alguns deles davam conta que coisas sobrenaturais aconteciam no lugarejo, cercado por fazendas, chácaras e sítios. A paisagem de Alvorecer era quase que completamente rural, mas seu núcleo era composto por um centro comercial, onde funcionavam lojas, armazéns, bares, clubes de lazer, restaurantes, farmácias e uma agência bancária. 


E neste lugar bucólico, Ângelo, Pandora e Ulisses cresceram unidos e felizes. Descobrindo juntos os sentimentos e os desejos. Aos 12 anos, Pandora trocou o primeiro beijo com Ulisses, e este selou o amor que os marcaria pra sempre. Iniciaram um namoro de criança, puro e inocente. Tudo sob as vistas de Ângelo, seguidor da prima de personalidade forte e encantadora, e resignadamente apaixonado por Ulisses, o belo e forte aprendiz de domador de cavalos. 


Aos doze anos, Ângelo já tinha a mais pura clareza da impossibilidade de seu amor por Ulisses ser correspondido e concretizado. O garoto o amava como um irmão, e era um amor poderoso e verdadeiro. Ulisses reconhecia a fragilidade e as delicadezas de Ângelo e o protegia de tudo. Pandora também, apesar da diferença de idade de apenas alguns meses, tratava o primo como um filho e a ligação entre ambos era muito forte. A verdade, é que Pandora sabia, que não só ela, mas Ângelo também amava Ulisses profundamente. Nunca havia se esquecido da conversa que tiveram aquele dia às margens do rio, embora jamais houvessem tocado no assunto novamente. E saber do amor impossível do primo e de como esse sentimento o tornara retraído e melancólico, a fazia sentir uma pena imensa dele, despertando em si um inescapável instinto maternal. Ângelo era mais que seu primo, era seu irmão, seu filho, um pedaço seu que doía se algo de ruim acontecesse a ele. E ela tinha certeza que um dia, um novo amor surgiria na vida dele e toda sua tristeza passaria. Todos seriam muito felizes juntos, ela e Ulisses e Ângelo com seu possível e correspondido amor.


Quando completou 16 anos, Ângelo partiu para estudar medicina veterinária, numa renomada universidade longe de Alvorecer. Pretendia voltar após formado para cuidar dos inúmeros animais das fazendas de seu pai. Quanto a Ulisses e Pandora, haviam se tornado o casal mais amado da cidade, todos os admiravam e tinham um imenso carinho pela forma como eles se amavam, eram um retrato da perfeição. Jovens, bonitos, idealistas, de temperamento forte. Os dois só se desentendiam quando Pandora falava sobre seu desejo de ir embora de Alvorecer. Ulisses era filho da terra, convicto de suas origens e desejo de permanecer nela até envelhecer. Tinha se tornado um exímio domador de cavalos, um dos melhores da região e já estava sendo preparado pelo sogro Zé Raimundo, para ficar em seu lugar, administrando as terras de Sebastião, que seriam de Ângelo, tão logo ele e o co-cunhado já não estivessem mais entre eles. Porém, os planos de Pandora eram outros. Ela se envolveu nos negócios da tia e da mãe na confecção de roupas e descobriu-se uma talentosa e promissora estilista, encantou-se pelo mundo da moda e resolveu expandir os negócios mais ainda. Queria fazer um curso de alta-costura em Paris, mas a simples menção deste desejo, era o suficiente para que os pombinhos apaixonados entrassem em um campo de batalha. Ulisses não admitia ficar quatro anos longe de Pandora e muito menos morar na capital quando ela voltasse pronta para abrir uma rede de lojas de moda country. Pandora sofria e chorava muito com a resistência de Ulisses à suas ideias, pois não suportava brigar com o homem de sua vida e queria fazer entendê-lo que nada abalaria o amor dos dois. 


Foi para deixá-lo mais seguro, que aos 18 anos, Pandora aceitou casar-se com Ulisses. O casamento foi anunciado com festa na cidade, todos comemoraram alegremente a notícia. Faltando uma semana para o casório, Ângelo chegou à Alvorecer, seria padrinho da prima. Sozinhos no quarto, Pandora colocou o vestido de noiva desenhado por ela, para que o primo a visse linda e esfuziante toda de branco. Foi nesse momento íntimo entre os dois, que Pandora contou a Ângelo suas intenções após o casamento. Ela achava que casando-se seria mais fácil convencer Ulisses a ir com ela para Paris. A porta do quarto que estava entre-aberta, foi bruscamente empurrada por Ulisses, que furioso, confirmava aos gritos para Pandora que não iria com ela para Paris nunca e que não conseguia acreditar que ela tinha aceitado se casar só para manipulá-lo. Os dois discutiam aos berros, enquanto Pandora tentava explicar e acalmar o noivo, diante de um Ângelo incrédulo. Finalizando a discussão, Ulisses bradou que não haveria mais casamento e saiu batendo a porta, deixando Pandora em desespero. Vendo Ulisses sair transtornado, Pandora foi atrás dele. Pela janela do quarto, no andar de cima do casarão, Ângelo observou Ulisses entrar em seu jipe como um foguete. Em seguida, viu a prima montar em Diamante, seu cavalo branco, e sair disparada em direção ao jipe.   


Todos ficaram nervosos e apreensivos dentro da casa. Às vésperas do casamento mais esperado pela sociedade alvorecensse, uma briga que poderia acabar com tudo. Ângelo pensou em ir atrás dos dois, mas foi demovido da ideia pelos familiares. 

Pandora cavalgava num ritmo assustador, no intuito de alcançar Ulisses. Diamante era perigosamente veloz. De repente, um estrondo. O relincho assustado de Diamante. Pandora no chão. Sangue.   



Esta é a primeira parte de duas, em breve postarei a continuação final.

sábado, 25 de outubro de 2014

UM ENCONTRO ESPECIAL


Olga Feld embrulhava a última xícara de porcelana, guardando-a com cuidado na caixa de louças, que deixou para ser levada por último no carreto de mudanças, com receio de que as quebrassem. Já tinha perdido tudo que lhe era de mais precioso na vida, seus objetos de estimação e as lembranças eram tudo o que restava. 

Num período de 15 meses, havia perdido o único filho e o marido. Com a morte do companheiro de mais de 40 anos, a casa tinha ficado grande demais para Olga e sua imensurável solidão. Três meses após a morte de seu amado George, Olga mudava-se de seu antigo casarão afastado da movimentação da cidade, para um modesto e confortável apartamento no centro. Talvez a agitação nos arredores da nova residência espantaria a tristeza e a saudade pela ausência do cônjuge que já não estaria mais ao seu lado.

Só que a dor que Olga carregava no peito juntamente à seu semblante amargurado, era muito maior e mais profunda do que o fato de encontrar-se agora viúva e solitária. A perda do marido servia apenas para agravar o pesar pela perda do filho e aumentar a culpa e o remorso que sentia por não ter se reconciliado com ele antes de sua prematura e definitiva partida.

Pouco antes do filho vir a falecer, ela já pensava em fazer as pazes com ele. Procurá-lo e aparar as arestas de uma relação que sempre fora possessiva e dominadora, como toda a relação entre pais e filhos judeus ortodoxos. Mas o marido radical e inflexível, jamais aceitou uma reaproximação com o filho ingrato, que abriu mão de seguir os preceitos da religião. E afim de não gerar mais atritos, Olga voltava atrás na decisão de procurar pelo filho, que ela nunca mais soube onde estava desde que saiu de casa.      

Agora, sem o marido ao lado, ela estaria livre pra procurar pelo filho, envolvê-lo em seus braços com força e dizer que o amava e o aceitava incondicionalmente. Mas já não era mais possível, e por isso amaldiçoava a infeliz e terrível ironia de filhos morrerem antes de seus pais. Por incontáveis vezes sentiu-se uma mulher má, tão radical e inflexível quanto o marido, desamorosa, insensível, e era inevitável pensar que agora estava sendo punida por isso, sem George e sem seu filho adorado. A solidão era seu castigo.

Os dias se passavam regados a música judaica, leituras da torá, chás e orações. De vez em quando, quando sentia que estava prestes a desfalecer de tristeza, Olga fazia uma rápida caminhada aos arredores de seu prédio em dias ensolarados, nesses raros momentos parava e olhava pro céu durante longos minutos, amenizando a saudade ao imaginar que pai e filho estariam agora juntos e reconciliados, caminhando por nuvens brancas e fofas, olhando por ela e protegendo-a lá de cima.

A vizinhança do prédio era simpática, algumas senhoras até tinham tentado inseri-la em suas atividades semanais como a feitura de artesanato nas terças, o jogo de cartas às quintas e as manhãs na piscina às sextas, mas Olga havia recusado todos os convites, ainda não se sentia disposta ao convívio social, mal conseguia ir até a sinagoga, sem George não tinha a mesma graça. Evitava trocar muitas palavras com quem quer que fosse, apenas o estritamente necessário. Era fechada e passava a impressão de sisuda e antipática aos outros moradores, do porteiro à síndica.

Mas um dia, voltando das compras, na entrada do prédio, Olga deparou-se com Adriano. Jovem alto, atlético, moreno de cabelos curtos e negros, passou por ela apressadamente com os braços carregados de livros, cadernos e papéis, ao correr para tentar pegar o elevador, deixou cair um calhamaço. Puxando seu carrinho de compras, Olga abaixou-se para recolher o que pareciam ser apostilas e gritou pelo bonito rapaz. Adriano, que mal havia percebido Olga, voltou-se. Sorriu. Pediu desculpas pela distração e agradeceu, oferecendo-se para ajudá-la com as compras. Ela admirou-se com a simpatia e educação do rapaz que parecia fora de órbita quando passou por ela, tamanha era sua pressa.

No elevador, Adriano perguntou se Olga era moradora nova - no que ela assentiu - e explicou que estava correndo porque tinha o aniversário de uma amiga pra comparecer e ainda precisava voltar a tempo de corrigir as dezenas de provas que carregava nos braços. Ele era professor universitário e antigo morador do prédio, o qual comprou um apartamento assim que se casou há mais de 5 anos. O elevador parou e eles descobriram que moravam no mesmo andar, um de frente pro outro. Adriano sorriu, simpatizando com a coincidência e foi em direção a seu apartamento, prometendo a Olga que quando estivesse mais tranquilo a convidaria para um café de boas-vindas. Olga agradeceu, demonstrando pela primeira vez interesse e boa vontade com um vizinho.

O que fez a velha viúva judia, solitária e amargurada corresponder a simpatia de Adriano, era o fato de ele suscitar em sua memória já desgastada lembranças do filho morto. Os dois regulavam em idade, eram altos, fortes, bonitos e o mesmo jeito meigo, embora seu filho fosse mais claro, quase loiro. Olga sentiu-se renovada ao passar aqueles poucos instantes ao lado de Adriano no elevador, era como se uma nova razão pra continuar vivendo acabasse de se abrir pra ela. De repente sentia-se mais disposta. Arrumou as compras na cozinha, distribuindo-as nos armários e na geladeira. E preparou um bolo que era sua especialidade, um bolo de mel, o preferido do filho.

Adriano encontrava-se na cozinha, recostado a pia, de pijama, sorvendo uma xícara de café e observando os primeiros raios da manhã entrarem pela janela, quando ouviu a campainha. Tinha acabado de acordar e não imaginava quem podia ser aquela hora. Ficou enternecido com o gesto carinhoso de Olga ao lhe entregar um pote com um generoso pedaço de seu bolo de mel. Convidou-a à entrar, pedindo desculpas pelas vestes e lhe serviu uma xícara de café. Também cortou duas fatias do bolo, para si e para ela. Sentaram-se no aconchegante sofá cinza e conversaram.

Durante a conversa Olga não sentiu-se à vontade para falar do filho, apenas contou que era uma viúva recente e estava tentando refazer sua vida no novo lar. Adriano também não lhe revelou toda a verdade sobre si. Disse que também era viúvo, que havia perdido a esposa á pouco mais de um ano, e estava tentando superar a perda, e embora a cada dia a ferida aberta da morte do ser amado cicatrizasse um pouco mais, tinha momentos de solidão e falta que eram insuportáveis. Olga entendia perfeitamente, mas acreditava que por ele ser jovem, sua situação era bem mais dolorosa que a dela. Devia ser excruciantemente difícil perder uma jovem e apaixonada mulher, no auge, cheia de vida e de planos. Adriano só não conseguiu contar que sua esposa na verdade, não era esposa, mas marido.

Sempre foi seguro de sua sexualidade e nunca teve problema em assumir-se pra ninguém, mas aquele ainda não parecia o momento para todas as revelações. Olga já era uma senhora de idade e apesar de amável poderia ficar chocada, e ainda parecia tão frágil com toda a situação pela qual passava. Não havia necessidade de lhe enfiar goela abaixo, logo de cara suas preferências sexuais. Parecia uma senhora bastante tradicional, e não queria causar mal-estares em uma relação que acabara de começar. Tinha gostado muito de Olga e queria conversar mais vezes com ela, fazê-la sentir-se menos solitária.

Olga e Adriano tornaram-se bons vizinhos. E depois que Olga contou à Adriano sobre o filho Nathan, que foi expulso de casa porque decidiu assumir e viver sua homossexualidade, eles tornaram-se grandes amigos, confidentes. Mas quando Adriano finalmente confessou que era gay, alguns meses depois, e que o nome de seu falecido marido, com quem viveu e amou profundamente por 6 anos, era Nathan Feld, os dois se tornaram mãe e filho.

Olga não conseguiu conter a emoção. Chorou, sorriu, agradeceu aos céus por lhe dar uma segunda chance de ser mãe. Para ela, Adriano era um presente de Deus, a confirmação de que Ele não queria mais castigá-la, de que a havia perdoada por ter sido mãe intransigente e incompreensiva. Ela só não entendia porque Adriano havia demorado tanto pra lhe contar a verdade.

Ele explicou que soube quem ela era desde o momento que lhe presenteou com um pedaço de bolo de mel, o bolo preferido de Nathan. Aquele que ele sempre preparava quando a saudade da mãe apertava mais forte, e que ela o ensinou a fazer quando tinha 10 anos, mas o dele nunca ficava igual ao dela. Ele sentia falta do bolo dela, preparado por ela. Mas quando ele comeu o bolo naquela manhã, não notou diferença alguma, era o mesmo bolo, o mesmo gosto de saudade, nostalgia, amor e melancolia. A mesma doçura intensa, típica do bolo judaico. E ele se segurou com todas as suas forças pra não desabar em lágrimas naquele momento. E quando teve certeza de seu amor, descobriu a hora certa de contar a verdade.

E os dois se abraçaram e choraram e riram e viveram felizes por se encontrarem e não estarem mais sozinhos.     


sábado, 13 de setembro de 2014

UMA HISTÓRIA DE OBSESSÃO - PARTE 2 (FINAL)


Antes de começar a leitura, leia a parte 1

Gael desejou ir ao enterro de Luan, queria dar seu último adeus, mesmo depois de tanto tempo sem ter contato. Foi difícil digerir e se acostumar com o ocorrido. Aceitar que alguém jovem e cheio de vida como Luan tinha partido pra sempre, não era simples. Não conseguiu comparecer ao enterro. Mas de repente, de forma triste e involuntária, Luan tinha voltado pra sua vida com força total. A ideia de sua inexistência, mexia com Gael de uma forma perturbadora. Quando deu por si, havia se tornado um grande stalkeador das páginas de Luan em suas redes sociais. O triângulo vivido entre ele, Luan e Santiago era algo que marcara sua vida de forma indelével. Luan não era um simples conhecido, ele fazia parte de sua história. E se Santiago, uma das partes do triângulo, tinha desaparecido de sua vida como fumaça no ar, ainda restavam os registros virtuais de Luan pra que ele pudesse recordar com uma saudade inconfessa, os resquícios de uma paixão avassaladora, uma fantasia, que só ele sabia o bem e o mal que lhe fazia. Um sentimento que mesmo sem querer ele cultivava em silêncio e segredo, pois tinha vergonha que alguém descobrisse que ainda não havia superado por completo aquela desilusão, mesmo após tanto tempo. Acalentava o drama do amor não correspondido e parecia sentir prazer em ser a eterna vítima rejeitada de um desejo não concretizado. Em seus delírios operísticos, ainda desejava uma retratação, um pedido de desculpas de ambas as partes, mas sabia que Santiago mal lembrava de sua existência pra sentir algum tipo de remorso por não amá-lo, e quanto a Luan, qualquer desejo em relação a ele agora, era inútil. 

Quando completou um mês da morte de Luan, Gael escreveu um texto em homenagem ao antigo amigo em sua página no facebook, e foi enquanto conferia outras mensagens, que uma certa declaração de amor póstuma lhe chamou a atenção. O texto apaixonado e emocionado de Taciano, dizia o quanto Luan tinha sido importante em sua vida, e como seria difícil continuar sem ele. Que Luan o tinha transformado pra melhor e foi o presente mais especial que ele já havia recebido. Terminou agradecendo pelo um ano de vida juntos e por tudo de maravilhoso que dividiram, e que ainda o amaria por muito tempo.

Surpreso e um pouco chocado, Gael sentia como se todos continuassem vivendo suas vidas cheia de acontecimentos maravilhosos e emocionantes com o passar do tempo, enquanto só ele se prendia aos sentimentos do passado, permanecendo solitário com seus devaneios românticos. Em sua lógica, Santiago havia desaparecido e provavelmente estava vivendo uma vida cheia de promiscuidades, e Luan tinha encontrado e estava vivendo um grande amor, um amor que ele sempre sonhou viver, um amor que ele merecia, e não Luan, que havia desrespeitado e passado por cima de seus sentimentos, quando se envolveu com Santiago. 

A inveja e o ciúmes tomou conta de Gael. Um gosto amargo, uma sensação de ter sido tripudiado, achincalhado e desconsiderado de todas as formas por duas pessoas pelas quais sempre tivera os melhores sentimentos. A raiva e a revolta, agora que descobrira o namorado de Luan, agora que sabia que ele continuou levando sua vida sem sofrer por Santiago, como ele sofreu, e que estava feliz, vinha mais forte do que na época dos acontecimentos.

Ficou obcecado pelo tal viúvo de Luan. Gael queria saber tudo sobre ele. Quem era, onde morava, qual sua profissão, como se conheceram, e foi à fundo em suas pesquisas. Passava horas nas redes sociais procurando informações sobre Taciano, visitava amigos em comum, até descobrir que Laura também era sua amiga. Sutilmente sondou sobre ele com Laura e obteve mais informações. Descobriu que o rapaz era artista plástico, morava no interior de São Paulo, num pequeno e bucólico lugar chamado Atibaia.

Gael tinha sonhos recorrentes com Luan e Santiago, em todos eles, ele era humilhado de alguma forma. Certa noite acordou angustiado, suando, com falta de ar, a cólera tomara conta da sua mente. Precisava fazer algo a respeito, algo que o fizesse se sentir melhor. Abriu o notebook e permaneceu parado em frente a uma imagem de Taciano, como se tivesse em transe. Ele nem era tão bonito, mas parecia muito interessante. Ficou imaginando como era a relação entre ele e Luan. Se eles eram românticos, se transavam muito, se tinha uma música só deles, se se chamavam por apelido, se se amavam de verdade. Às vezes ele achava Luan tão frio e prático, que parecia incapaz de se entregar a uma emoção genuína, sem reservas. Enquanto pensava em tudo aquilo teve um click. Já sabia quase tudo o que podia saber através de terceiros, era chegada a hora de conhecer Taciano por si mesmo. Na página do ex-namorado de Luan clicou em "adicionar aos amigos" e em seguida deixou um recado in box, explicando o quanto era amigo de Luan e como estava feliz em encontrar alguém que havia sido tão próximo dele, após o trágico ocorrido.

No dia seguinte Gael verificou que Taciano tinha aceitado seu pedido de amizade, então passou para o plano b. Gael e Taciano travaram uma empolgante amizade virtual, se falavam quase todos os dias. Taciano andava muito solitário e carente após a morte de Luan e todos que se aproximassem dele alegando que eram amigos de Luan, ele aceitava de braços abertos como sendo seu também. 

Gael inventou uma bela história de amizade entre ele e Luan, amizade que nunca existiu, mas ele sabia exatamente o que comoveria Taciano, e o faria entrar em sua vida, por isso teceu sua teia direitinho. Aos poucos Gael tornou-se confidente de Taciano, que estava com uma forte tendência à depressão. Dois meses após iniciarem a amizade virtual, Taciano convidou Gael para visitar sua cidade e conhecê-lo. Para Taciano seria um fim de semana encantador. Para Gael seria o reconhecimento indispensável de um terreno, onde ele daria seu tiro de misericórdia.

Mesmo cheio das mais amargas intenções, os dois dias passados ao lado de Taciano foram perfeitos para Gael. Ele pôde constatar o quão interessante era Taciano, mais do que isso, era uma pessoa especial. Ele lhe mostrou suas esculturas e desenhos, passeou com Gael pelos pontos turísticos da cidade cheia de belezas naturais, preparou comidinhas saborosas e falou muito, muito sobre Luan e o amor dos dois. Mostrou fotos, bilhetinhos, presentes trocados, e enquanto contava tudo sobre eles Gael sentiu a velha pontada de inveja em seu peito, mas dessa vez era uma inveja diferente, não aquela carregada de rancor, mas uma inveja de auto-piedade. Ele queria ter aquilo, viver um amor assim, mas nunca havia sido agraciado com tal privilégio. Achava-se uma pessoa de coração melhor e mais puro do que Luan, no entanto nunca tinha sido recompensado por isso com um amor. O que ele fazia de errado? Queria respostas, mas não as tinha. Já que não havia recompensa por ser bom, prosseguiria com seu plano sem remorsos.

Naquele fim de semana Gael ficou sabendo também como funcionava a dinâmica da relação. Taciano passava a semana com Luan em São Paulo e nas sextas à noite partiam pra tranquilidade do interior, onde faziam amor com calma e Taciano ficava mais inspirado para criar. De volta à capital, Gael ficou dividido entre seguir com seu plano ou deixar Taciano em paz. Mas ele sentia que Taciano havia gostado dele de verdade e pensou que talvez valesse à pena enterrar o passado de vez e começar algo novo, verdadeiro e sólido, bem distante das fantasias platônicas as quais estava acostumado. Ficou uns 3 dias sem falar com Taciano, não respondeu suas mensagens de texto, nem seus recados no face, até que quebrou o silêncio virtual e foi direto ao ponto. Confessou à Taciano que conhecê-lo tinha mexido muito com ele, e como ele sabia que o rapaz não estaria preparado para um novo envolvimento logo após a perda precoce de Luan, preferia manter certo afastamento, pois não estava disposto a sofrer por um novo sentimento não correspondido. Taciano protestou, confirmou que tinha sentido algo muito especial por ele também e que os dois deviam se ver de novo o mais breve possível para resolverem suas questões emocionais.

Quando se encontraram pela segunda vez, Gael e Taciano explodiram em desejo. O sexo foi sublime, forte e poderoso. Gael nunca tinha sentido nada igual, e Taciano deixou-se levar por suas emoções mais profundas, a falta de sexo desde a morte de Luan, aliada a saudade e o desejo por Gael, tão ingênuo, doce e diferente de Luan, que era forte, decidido, genioso, nunca parecendo precisar de proteção. Gael parecia frágil, parecia precisar de um homem forte que cuidasse dele. Os sentimentos se confundiam. Gael ser amigo de Luan podia complicar um pouco as coisas, mas o fato é que ele precisava superar a perda e Gael surgiu como um anjo, ele queria viver aquele sentimento. Pela manhã, Gael foi acordado com café na cama. Taciano era mesmo fascinante, mas Gael havia sonhado com Santiago no lugar dele por tantas vezes e parecia que nunca, nada seria o suficiente pra afastar aquelas lembranças e o sentimento de rejeição dele.

Taciano foi pro banho enquanto Gael tomava seu café, entre um gole e outro olhou pro teto com uma sensação de triunfo. Saiu da cama e abriu a porta da rua, olhou pro céu azul e límpido fixamente e disse com toda a calma como se conversasse cara a cara com ele: Luan meu querido, você viu? Você viu tudo o que aconteceu aqui essa noite? Como você se sentiu? Eu me senti maravilhosamente bem. Cumpri minha promessa, me vinguei de você. Roubei o teu homem, me espojei na mesma cama que ele fodeu com você. E foi bom viu, nossa, que homem gostoso! Eu podia fazer ele me amar, me venerar e ficar louco por mim, assim como ele ficou por você, não, mais, muito mais louco e apaixonado por mim do que foi por você. Mas eu não quero, sabe. Não quero teus restos, tuas migalhas. Eu só queria mesmo que você sentisse o mesmo que eu senti quando você me tomou o Santiago. E agora eu espero que você esteja aí em cima rolando de dor e ódio e tristeza, ou será que você tá no inferno? Será que eu tô olhando pra direção errado? Será que é aqui embaixo dos meus pés que você está, seu maldito?

A voz de Taciano chamando por Gael o fez sair do transe que se encontrava na conversa imaginária com Luan. Taciano questionou o que ele fazia na rua e Gael confessou que foi apreciar o céu de brigadeiro da cidade. Era sábado e Taciano estava empolgado com os novos rumos de seu relacionamento com Gael. Passaram um fim de semana romântico, Taciano estava novamente apaixonado, e Gael já não conseguia mais separar delírio de realidade. Sabia que sonhara com momentos como aquele durante muito tempo, mas era Santiago que deveria estar no lugar de Taciano, isso não saía de sua cabeça. Por vezes imaginou o rosto de Santiago, o corpo de Santiago, a boca de Santiago enquanto estava com Taciano. Mas fingiu muito bem uma sanidade que já não tinha mais nas últimas horas que passou ao lado de Taciano.

Na segunda-feira estava de volta à sua casa, deixou Taciano como namorado, mas assim que chegou excluiu-o e o bloqueou de todas as redes sociais. Sem conversas, sem explicações. Havia finalizado seu plano com louvor.

Taciano tentou buscar explicações, procurou por Gael, descobriu a verdade de suas intenções, sofreu por um tempo, mas se recuperou. 

Quanto a Gael, foi infeliz pra sempre.               

domingo, 3 de agosto de 2014

UMA HISTÓRIA DE OBSESSÃO - PARTE 1


Quando soube da morte de Luan pelo facebook, Gael ficou estarrecido. Já não se falavam há muito tempo, mas de vez em quando, Gael sentia saudades de Luan. Nunca tinham sido grandes amigos, mas no tempo em que trabalharam juntos, eram ótimos colegas de trabalho. Mesmo sendo subordinado de Luan, os dois conversavam muito e se davam super bem. Gael achava Luan divertido e admirava seu humor ácido, e seu jeito prático e direto, às vezes até sendo cruel em suas colocações, mas sempre humano e compreensivo. Gael, de natureza mais dócil e frágil, por vezes invejava a atitude e a segurança de Luan. Até mesmo, quando soube do envolvimento entre ele e Santiago, Gael sofreu, mas não conseguiu sentir raiva de Luan.

Santiago era o homem dos sonhos de Gael, mas acabou virando seu maior pesadelo. Ambos começaram ao mesmo tempo na empresa, e embora Santiago tenha demorado pra perceber a presença tímida de Gael, durante o treinamento, os olhos de Gael captaram a de Santiago desde o primeiro segundo em que estiveram juntos no mesmo ambiente. E durante os intermináveis dias de treinamento, a mínima menção a presença de Santiago, causava tremores, palpitações, olhos brilhantes e suspiros profundos em Gael. Santiago não era o homem mais bonito que Gael já tinha conhecido na vida, mas diante dele não conseguia se lembrar de nenhum outro.

No derradeiro dia de treinamento, durante o intervalo pro lanche, Santiago finalmente se aproximou de Gael, que no ápice de sua timidez mal conseguiu disfarçar o rosto pálido e o sorriso amarelo, sem graça, quase desesperado. Afinal, o homem dos seus sonhos, o "cara perfeito", finalmente notava sua presença. O que dizer numa hora dessas? Como se comportar? Como agir naturalmente? Gael definitivamente não sabia. E se recuperando, logo após uma ligeira privação de sentidos, conseguiu respirar fundo e sorrir, oferecendo educadamente um pedaço de seu sanduíche, que gentilmente, Santiago recusou.

Desde então, fluiu uma bonita amizade entre Gael e Santiago, amizade essa que crescia a cada dia. Eles estavam sempre próximos no trabalho, um ajudava o outro, conversavam amenidades, trocavam confidências, contavam piadas. Eram parceiros, dois grandes irmãos, mas a paixão que Gael acreditava que passaria com a amizade, só aumentava, e o atormentava. Quanto mais ele conhecia Santiago, quanto mais sabia de suas qualidades e fragilidades, sua batalha de vida, seus sonhos, mais o admirava, mais o amava e desejava como homem, como amante. Mas Santiago não dava sinais de que tal sentimento pudesse ser correspondido, de que pudesse passar de pura amizade fraternal.

Sufocado pela falta de coragem de se declarar, Gael se abriu com Laura, uma amiga de confiança dele e Santiago, que logo lhe aconselhou a confidenciar seus sentimentos. Gael passou a fantasiar como seria dizer a Santiago que o queria mais que um amigo e o amava profundamente. Devaneava docemente que ele ficaria surpreendido e feliz e depois confessaria que também era apaixonado por ele, e os dois iniciariam um namoro e viveriam um lindo romance cheio de ternura e paixão. Mas no fundo, Gael não acreditava nisso, não se sentia verdadeiramente capaz de provocar qualquer sentimento além de amizade em Santiago. Se sentia pouco atraente e sem graça perto do homem lindo, charmoso e sedutor que ele era. E por fim, se conformava em ocultar seus reais sentimentos e manter a amizade leal e sincera de Santiago, do que arriscar uma declaração e afastar de vez seu grande amor.

A situação íntima de Gael, que já era um sofrimento pra ele, piorou muito com a troca de supervisor que ocorreu no setor em que trabalhava, dois meses depois. Luan era o novo supervisor, decidido, empertigado, tinha postura de quem sabia o que queria e corria atrás, doa a quem doesse. Por outro lado, também era a alegria do setor, e conquistava a todos com seu jeito espontâneo e sagaz, inclusive Gael, que ficou tão fascinado pelo jeito de seu novo superior, que começou a trocar confidências com ele, o que o levou a contar mais do que talvez devesse. Em sua ingenuidade, Gael acreditava que Luan poderia realmente ajudá-lo com seus conselhos, sempre tão inteligentes, e falou pra ele sobre seus sentimentos por Santiago. Luan não era mal, mas como uma velha raposa que era, passou a prestar mais a atenção em Santiago, mas não com intenção de fazer alguma ponte entre ele e o iludido Gael.

Luan também tornou-se íntimo de Laura e cada vez mais próximo de Santiago. Uma proximidade que intrigou Gael. Uma desconfiança. Mas ele não podia, não queria acreditar em sua intuição. Preferiu pensar que estava imaginando coisas. Mas, por mais discreto que todos fossem, Luan, Santiago e Laura, havia um clima diferente no ar, uma situação da qual ele não fazia parte, e isso o incomodava e entristecia. Laura e Santiago eram seus melhores amigos, e Luan era o chefe querido, com quem ele conversava sobre tudo. Então, por que sempre que ele se aproximava enquanto os três conversavam em uma rodinha, quase cochichando, eles rapidamente mudavam de postura e assunto? Ou quando conversavam Luan e Laura ou Luan e Santiago?

Um dia, sem mais suportar a sensação de exclusão, praticamente implorou à Laura que lhe contasse o que estava havendo, pois em outras tentativas, com qualquer um dos três, sentia-se sempre ludibriado. E finalmente, vendo a angústia do amigo, Laura contou. Luan e Santiago estavam de caso há algumas semanas.

Gael engoliu seco, sentiu como se uma bomba tivesse explodido em sua cabeça. Laura viu os olhos do amigo rasos d'água, sentiu que o havia ferido fundo, mas já não suportava mais vê-lo angustiado. Uma hora ele haveria de saber, só não tinha contado antes porque queria adiar ao máximo a mágoa que ele sentiria.

Os dias se passaram, e Gael sofreu como nunca. Pensava em Santiago e Luan, e chorava, na cama, no chuveiro, vendo TV, ouvindo música, até comendo as lágrimas vinham intrusas e fartas. A dor o dominava. Sentia-se dilacerado, impotente, incapaz de brigar pelo seu amor. Tinha complexo de patinho feio, pensava que jamais poderia competir com Luan. Tinha vontade de desaparecer, nunca mais olhar na cara de nenhum dos dois. Sentia vergonha de achar que um dia Santiago poderia olhá-lo com outros olhos, como se Santiago fosse superior à ele. Entrou em um processo de auto-depreciação e baixa auto-estima. No trabalho mal conseguia falar com Santiago, porque a relação entre ele e Luan parecia estar ficando cada dia mais séria, e ele tinha uma sensação terrível e amarga de que Santiago sabia que ele o amava, e isso era a morte. Por diversas vezes fantasiava que era a grande chacota entre Luan e Santiago, que os dois quando juntos se riam e debochavam dele, por ser romântico, bobo e sem noção, achando que pudesse ter algo com Santiago. Mas de concreto, ele nunca viu nenhum comentário e nenhum tipo de deboche. Ambos eram muito discretos, e nunca assumiram nada. Todas as informações sobre os dois eram dadas por Laura, depois de muita insistência dele em saber, deixando-a sempre dividida entre Luan e Santiago e ele, que era amiga dos três e sentia-se numa "sinuca de bico".

Quando as coisas começaram a esfriar entre Santiago e Luan, Laura sentiu-se aliviada, pois poderia dar uma boa notícia à Gael e não se envolveria mais no caso. E as coisas esfriaram porque Luan começou a se apaixonar por Santiago e querer algo mais sério. Mas a leveza de um relacionamento sem compromisso era tudo o que interessava à Santiago, sem paixões incendiárias nem cobranças, apenas um sexo bom e uma companhia agradável em momentos pontuais. E como Luan tinha uma certa tendência á Alex Forrest de Atração Fatal, Santiago achou melhor botar um ponto final em seu envolvimento e evitar o que ainda podia ser evitado.

Gael ficou feliz ao saber que o caso não passou de uma aventura para Santiago, sentiu até um pequeno sabor de vingança, pois imaginou que Luan estivesse sofrendo, e a sensação era boa, vê-lo passar pelo que ele estava passando há meses. Mas também sabia que Luan era prático e jamais se auto-flagelaria como ele, o sofrimento de ambos jamais se igualaria, e isso o deixava péssimo. Logo Luan estaria com outro e Santiago também, mas ele continuaria curtindo seu maldito amor não correspondido, já não tinha mais nenhuma esperança, mas também não conseguia arrancar Santiago da cabeça nem do coração. Até que tomou uma drástica decisão, precisava fazer algo por si mesmo.

Gael foi à procura de um novo emprego. Em poucas semanas assinava seu pedido de demissão. Luan tentou persuádi-lo da ideia, pois o achava ótimo profissional, mas Gael foi irredutível. Na hora das despedidas, deixou-se levar pela emoção. Abraçou com paixão à Santiago, que ainda amava, mas estava decidido a deixar de amar, tão logo atravessasse a porta da rua, e carinhosamente se despediu de Luan, de quem realmente não sentia raiva, apesar de certo resquício de ciúmes e inveja. Tudo absolutamente civilizado e honesto.

O tempo passou e o único contato que Gael tinha com Santiago e Luan era pelas redes sociais. Na verdade, Luan era apenas um número em sua lista de amigos, já que nunca disse um "oi" pelo face. E Santiago, de vez em quando dava um "oi", mas sempre sem muita paciência pra papo. Gael o stalkeava vez ou outra, pra matar a saudade, até que um dia Santiago o excluiu. Gael não entendeu, ficou chateado, rolou uma mágoa, mas percebeu enfim, que não podia mais alimentar um sentimento que já não fazia mais nenhum sentido. De vez em quando ele tinha saudade de Luan e sentia vontade de deixar uma mensagem, marcar um encontro, rir do passado e das ótimas tiradas que ele sempre tinha, mas sempre desistia da ideia, achava que seria humilhante ficar correndo atrás de quem nem lhe dava bola. No fundo, dentro daquele triângulo, ele era a única pessoa sincera, Luan e Santiago nunca haviam gostado dele de verdade, era o que pensava. Resolveu enterrar o passado de uma vez por todas.

Dois anos depois de se demitir, ao ver um link de luto compartilhado por Laura no facebook, em choque, Gael tomou conhecimento da morte de Luan. Os sentimentos ficaram embaralhados, angústia, tristeza, carinho, piedade, perda... Eles não eram amigos, mas existia uma ligação forte entre eles, ambos amaram o mesmo homem e foram rivais elegantes, quase amigos. Pelo menos agora, Gael tinha uma certeza, a morte de Luan destruía em definitivo qualquer fantasma que ainda pudesse existir daquele triângulo amoroso do passado. Mas isso não era verdade.


continua...